quinta-feira, maio 29

Ajusta-me que eu gosto

A Ana tem poucos amigos e são todos estranhos. Tão estranhos que a Lhena, a irmã dela, diz maldosamente que se fossem miúdos nos tempos que correm ,teriam sido diagnosticados com múltiplos síndromes. Aliás, esta brilhante psicóloga/psiquiatra de trazer por casa gosta de dizer que se a Ana fosse uma criança nos dias que correm teria até mesmo um diagnóstico incapacitante. Enfim...o amor fraterno não tem limites...

Na segunda-feira um desses amigo deu sinal de vida. Quando a Ana chegou ao seu trabalho, aquele que ela agora tem e que segue o mantra que o Júnior lhe incutiu, em vez de teres um trabalho em que ajudes os outros arranja um trabalho em que te ajudes a ti própria, tinha um envelope grande que dormia na secretária dela desde quinta-feira de tarde, entregue por mão própria, com a "obra" da imagem autografada e com, pasme-se! com uma longa dedicatória.

Quando soube da história fiquei passado e fartei-me de lhe dizer que aquilo não era um presente, era antes uma vil provocação, uma sem vergonhice, onde é que já se viu alguém se vangloriar de tal programa de ajustamento!?!?! Então e ela?  Fica sem parte do seu salário, passa a vida a dizer que estamos na miséria, que nunca mais poderá ir de férias  e ainda conta que assim que abriu o envelope, quando viu o que continha desatou a rir, desatou a rir sozinha, na sala enorme, do prédio enorme,com vista sobre Lisboa...Não se percebe.
- É sempre bom quando um amigo se lembra de nós, diz-me em tom pedagógico enquanto começa a catarolar uma música que inventa na hora, cujo refrão é "Ajusta-me que eu gosto". E continua a rir tal como ria naqueles fins de tarde, na esquina da rua dele com a rua dela, depois das aulas, enquanto ouvia as confidências e os sonhos de quem gostaria de deixar a sua marca no seu país. Rir é de facto o melhor remédio, riu-se porque se sentiu cúmplice de uma partida qualquer, riu-se porque é irónico ser ajustada por um ajustador tão amigo...

- É uma provocação indecente!, quase grito do além.
- Não é nada, diz ela calmamente, ele está orgulhoso do seu trabalho e quer partilhar essa alegria comigo e eu fico feliz por isso. E sinto orgulho. É como se fosse também um bocadinho uma vitória minha. Ele conseguiu o que queria. A isto chama-se amizade, sabias?
- Muito bem, digo eu, então e se aquele teu amigo de infância que queria matar parte da família e parte da população da Cidade Satélite te enviasse,vá , um pedaço do corpo da sua primeira vítima, vais-me dizer que também ficavas orgulhosa porque ele cumpriu o seu sonho e vais-me dizer que também punhas a coisa em cima da tua secretária só para ficares a olhar para ela.
- Depende, diz cautelosamente, de que parte do corpo humano estamos a falar? É que a minha secretária não é assim tão grande, diz piscando-me o olho.  Ri-se muito e com o dedo em riste faz  Bang Bang e  começa a cantarolar "Pim pam pum cada bala mata um, qual foi o porcalhão que de um pum...".

- Lhena! Volta que estás perdoada!!!!