Agora que o Júnior e a Boneca estão crescidos, a Ana aborrece-se.
Tem demasiado tempo livre. Não tem nada para fazer que realmente seja importante.
Nem o trabalho se aproveita, que continua a ser da treta. Faz aquilo em duas horas diárias, ou em quatro se houver mais uma das reuniões inúteis. Claro que finge trabalhar dez horas. Que culpa tem ela de ser sobredotada?
Cinco minutinhos por dia chegam para pretender ser capaz de uma parentalidade responsável. Duas ou três frases animadoras no tempo certo e um franzir de sobrolho, só para fingir que se importa.
Em suma, aborrece-se sem nada para fazer. Só lhe resta limpar o meu porta-retratos enquanto pensa no bom que era quando nos tinha que aturar, a mim, ao Júnior e à Boneca.
Tem muito tempo livre e, por isso, vai todos os dias ao ginásio. Pump, Pilates, Cycling e até Bum Bum. Fazer o quê, se não tem nada para fazer?
Quando não está a transpirar no meio de desconhecidos no ginásio, está nas aulas de inglês, ou de francês, ou de alemão, ou de hebraico. Tudo cursos universitários porque ela pode não ter nada para fazer, mas pelo menos quer ter diplomas que provem isso.
Nos dias muito parados, ainda faz no Duolingo o italiano, o espanhol e o russo, porque ela não vai em boicotes.
Com uma vida tão aborrecida, é claro que não anda bem. E o corpo dá logo sinal. Sente o corpo muito dorido. Muitas dores. Muito sono e, ao mesmo tempo, muita agitação. Falta de paciência. Pesadelos multilingues. Acordar aos gritos em diferentes idiomas só pode ser um mau sinal. Está de rastos psicologicamente porque se aborrece, não tem nada para fazer, não se sente útil e perdeu quase toda a sua influência em casa.
Para ter alguma coisa realmente importante para fazer, arranjou duas gatas. E claro, sem terem o meu charme — nem o meu pêlo, diga-se de passagem.
Agora diz que está a pensar candidatar-se a um doutoramento em “Gestão Estratégica de Tempo Vazio com Prática Intensiva em Multilinguismo Desnecessário”. Eu acho uma excelente ideia. Só para ver se finalmente alguém a chama de “professora doutora” com a mesma reverência com que antes diziam “mamã”.
Tenho pena dela. Está a definhar de tédio com uma eficiência quase profissional.
Com carinho post mortem,
Dulcineia 🐇
(agora num retrato mais limpo e sempre no blogue)