terça-feira, outubro 30

O mistério da ausência de um amigo normal

A Ana agora passa o tempo todo em alta-voz. Queria muito um telemóvel com o ecrã maior e agora que o tem, diz que é muito pesado, o que faz com que passe a vida em chamadas com o altifalante ligado.
Aliás, tudo lhe parece pesado ultimamente. Tão pesado que anda a considerar tomar anti-depressivos para ver se se anima. Tão pesado que raramente atente as chamadas dos cromos que lhe ligam, porque nem lhe apetece falar.
Ontem decidiu atender o telefone e lá estava um amigo a queixar-se, com um vozeirão, que ela nunca mais atendia, que nunca mais tinham falado, que estava farto de amizades intermitentes.
Ela aproveitou um momento em que ele recuperou o fôlego para lhe dizer, numa voz cansada, que estava doente há meses, como ele estava farto de saber e, que agora se sentia tão sem forças que provavelmente teria que tomar anti-depressivos para ver se não se sentia tão em baixo.
Foi aí que começou a gritaria...
Os amigos dela dão-lhe força gritando...
- Para com isso! Força-te! Nós não nos vamos abaixo. Incorpora-te! Para! Força-te!!! Tu és uma guerreira! Etc, etc,...

Eu quase que podia ver o tipo enfurecido aos berros do outro lado, a dar-lhe força...gritava tanto que na volta se ouviria mesmo que não estivesse em alta-voz...
A Ana lá lhe voltou a dizer que sente mesmo mal, doutra forma não pensaria em tomar anti-depressivos...
E foi aí que ele lhe deu o conselho que eu guardaria para a vida, se já não estivesse morto há que tempos:

- Vais tomar compridos?! Nada! Não vais nada! Para quê? Isso não te resolve, quanto parares vais estar ainda mais em baixo, se queres mesmo tomar qualquer coisa, aposta na cocaína, isso sim vai-te resolver!
Ela nem pestanejou. Ela acha tudo normal.Onde arranja ela estes amigos?! A única coisa que ela lhe disse, na sua nova voz desanimada, foi que para ela não ia funcionar porque era mais caro.

Ele, que já estava outra vez a gritar incentivos, percebeu que ela tinha dito crack e começou outra vez a berrar:
 - Estás a comparar a cocaína com o crack?! Não tem nada a ver! O crack acaba contigo pá! não te metas nisso! Vai por mim, se queres químicos só tens uma opção: cocaína.
Muito lentamente ela levanta a cabeça, olha para mim, como quem pensa "estou demasiado deprimida para achar graça a isto", e oiço dizer-lhe:
- Ok, vou desligar e ver se encontro um dealer.

Ele ainda voltou a ligar mas ela já não atendeu.

Incorpora-te?! A sério? Como é que esta gaja não me tem um amigo normal?!